segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

L'esprit d'escalier


Devido às atribulações do final do ano passado, este blog ficou um tempo parado e sem muitas atualizações. Por conta disso, alguns momentos específicos propícios a uma postagem foram perdidos e alguns posts interessantes perderam o sentido de serem feitos após passada a época certa, ou o timing perfeito.
Em francês, há uma expressão comumente utilizada para representar essa sensação de arrependimento de poder ter usado um comentário inteligente no momento apropriado mas só perceber isso quando este momento já passou. (Troque a palavra "comentário" pela palavra "postagem", atualizando o termo para a nossa contemporaneidade, e você saberá mais ou menos o que eu quis dizer). Para o português, podemos traduzir a expressão l'esprit d'escalier como "o espírito da escada".
Em homenagem a esta expressão, farei um post sobre... escadas!
Sim, escadas, e como estas podem e foram usadas de maneiras bem criativas nos quadrinhos, aproveitando o próprio formato desta mídia.

Vamos começar pela criativa disposição da montagem de uma página feita por Frank Quitely, primeiramente na obra We3, escrita por Grant Morrison. Falar do argumento de Morrison é chover no molhado, eu mesmo o considero um dos três grandes autores da atualidade (ao lado dos unânimes Alan Moore e Neil Gaiman), mas agora chamo a atenção para a excelente narrativa gráfica desenvolvida pelos desenhos de Quitely. A página inteira serve de molde para o "bunker" dentro da casa, e cada quadro equivale a um andar, digamos assim.
Pouco depois o mesmo Frank Quitely (também ao lado de Morrison), agraciou-nos com mais uma bela página abusando da mídia "história em quadrinhos" na forma de contar e mostrar uma história, na edição número 5 de Grandes Astros: Superman, em que o Homem de Aço visita Luthor na prisão. O próprio cenário se funde com a diagramação e disposição dos quadros, e vice-versa. Reparem no cabeludo ao centro, na parte inferior da imagem, encostado na sarjeta que divide os quadros como se fosse uma viga da prisão onde se encontra. Reparem também, quando Lex desce a escada, como as pernas de um guarda complementam o desenho de outro quadro. Outro mestre nesta arte de fundir o quadro com o cenário é J. H. Williams III (de Batwoman e Promethea, como a ilustração no início do post).
Pesquisando na internet, encontrei essas duas tiras de 1934, chamadas Gasoline Alley, de Frank King. Adorei como a ação da história faz o olhar do leitor percorrer a página de uma forma não usual, sem seguir necessariamente a ordem linear a que estamos acostumados nos quadrinhos ocidentais (esquerda para direita, e de cima para baixo).

Reparem como esta inovadora maneira de se seguir a ordem de leitura se parece com aquela apresentada por Antonio Eder, mais recentemente, com o personagem O Gralha, conforme visto abaixo.
Antonio Eder depois fez uma autorreferência (parece feio, mas agora "autorreferência" se escreve assim após o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, ok?) quando participou do encadernado MSP 50, conforme mostrei aqui no blog há algum tempo. Reparem como o caminho percorrido pelos personagens em perseguição é que guiam a ordem de leitura não linear de cada quadro.

Isto tudo me faz lembrar do Monte Olimpo - inspirado em Escher, talvez? - como imaginado por George Pérez e John Byrne, quando a Mulher-Maravilha o visitava (local onde o senso de direção e gravidade não lineares deixaram até mesmo o Super-Homem confuso). As escadas de Hogwarts não se comparam a isso...
São inovações assim que fazem dos quadrinhos uma mídia única, pois tais efeitos são impossíveis de serem reproduzidos em literatura ou no cinema, por exemplo.
As histórias em quadrinhos possuem um diferencial muito grande em relação a essas citadas mídias. Enquanto nos cinemas uma imagem é seguida de outra, nos quadrinhos eles se apresentam simultaneamente, e é esse caráter simultâneo e ao mesmo tempo sequencial que diferencia esta mídia específica. O leitor, assim, tem o controle sobre a ordem em que quer ver cada imagem, podendo subir, descer, correr com os olhos e voltar quando quiser para onde quiser. A literatura também permite a releitura, mas não tem o poder da imagem à sua disposição. Uma pena que poucos autores e desenhistas usem essa possibilidade narrativa que os quadrinhos apresentam às suas mãos. Os casos que apresentei aqui são poucos, usando apenas o apoio "cenográfico" de escadas na montagem dos painéis de uma página, mas a ousadia pode ser muito maior.
Fiquem aqui com um exemplo criado por Frank Miller para a revista Elektra.

No próximo post, vou apresentar mais quebras da linearidade usando e ousando os aspectos próprios da mídia (sem mostrar escada alguma!), e também um estudo de caso com uma pequena obra de Alan Moore...





Música sugerida: Stairway to Heaven, Led Zeppelin.
Obra de arte sugerida 1: Relativity, de M.C.Escher.
Obra de arte sugerida 2: House of Stairs, de M.C.Escher.
Links sugeridos: Greatest spiral stairs
Prateleira dos sonhos:




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