segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

(des) Construção

Olá!
Voltando ao tema da semana anterior, quando tratei sobre usos criativos do formato específico da mídia "quadrinhos" por meio de escadas desenhadas, ora se confundindo com os painéis da página, ora guiando o olhar do leitor e ditando a ordem de leitura pela tela, hoje apresento uma desconstrução desse mesmo formato.
Mas vamos começar por uma tira do início do século passado, do visionário Winsor McCay, intitulada Little Sammy Sneeze, que sempre girava em torno do pequeno Sammy do título espirrando e as consequências de sua poderosa e inconveniente esternutação. Mas eis que chega um ponto em que McCay se pergunta: e se o espirro de Sammy não afetasse as pessoas ou o ambiente ao seu redor, mas afetasse a própria noção de "ao seu redor" existente na tirinha? O resultado foi a excelente quebra da moldura da página (lembrando, isso se deu ainda na primeira década do séc. XX, por volta de 1904 a 1908)!
Do argentino Liniers, selecionei essas duas tirinhas de Macanudo. Na primeira, apenas uma maneira bem criativa de se aproveitar a forma da tira para narrar uma história, chamada Esquina. Simples, mas eloquente em sua simplicidade. Notem como a "ordem cronológica" dos acontecimentos nesta historinha não segue o padrão da esquerda para a direita, mas sim das bordas para o centro.
Nesta outra (ainda Macanudo, de Liniers), ele extrapola as margens de um quadro, e conta uma história a partir disso, brincando com a própria disposição da tira no formato de quadros sequenciais. Logo abaixo, uma outra versão baseada na mesma ideia ou conceito, mas retirada do hilário blog Um Sábado Qualquer, com Deus conversando com Adão.
Mais outra tira de Um Sábado Qualquer, usando duas linhas para dar um efeito diferenciado na descontrução do formato dos quadrinhos. Em baixo desta, outra com o tema parecido que encontrei na internet, chamada Borderline, de Adam Koford, com linhas coloridas em verde destacando cada parte da história sendo contada, de forma a melhorar seu entendimento (pois estamos tão condicionados com a forma padrão ou "canônica" de ler uma tira que quando nos vemos frente a uma forma diferenciada, achamos mais difícil compreendê-la).
Essas duas últimas nos remetem à primeira imagem de Madman no início deste post (já que falei de Madman, fiquem aqui com um uso bem criativo das "páginas" de uma edição, formando uma única imagem panorâmica ao longo de toda a revista). Exemplos como este há diversos, selecionei apenas alguns para demonstrar a desconstrução da ordem de leitura a que estamos acostumados.
Mas vamos partir agora para o estudo de caso que prometi. Com vocês, Sr. Alan Moore e toda a sua genialidade (mas não nos esqueçamos da importantíssima ajuda dos desenhos de Rick Veitch, sem os quais a história não teria sido possível). Tido como o responsável pela desconstrução do super-herói (com Watchmen), Moore no final do século iniciou o que ele chamou de reconstrução do gênero. Um dos selos responsáveis por isso foi America´s Best Comics (ou ABC), em que o mago barbudo lançou vários títulos, dentro da revista Tomorrow Stories, e entre eles Greyshirt, uma homenagem direta a The Spirit, do Eisner. Todas as histórias de Greyshirt não possuem foco no personagem em si, mas nos vilões que este enfrenta. É da segunda edição de Tomorrow Stories que retiro essa história. Atenção aos detalhes, abaixo.
A página é dividida em quatro quadros. Reparem que no canto esquerdo de cada quadro há uma data, de exatos 20 anos de diferença entre uma e outra, em ordem decrescente do alto até abaixo. Reparem na decadência do prédio, de baixo para cima, e na evolução do letreiro, onde vemos o nome Greyshirt (de modo bem eisneriano), ao longo das décadas.
Na segunda página, Moore, com a ajuda dos desenhos de Rick Veitch, utiliza o artifício de apresentar-nos o ano em questão dentro do próprio cenário em que transcorre a história. Reparem o calendário no primeiro quadro, um cartaz de um festival no segundo, outro calendário no terceiro, e, muy sutilmente, no canto inferior esquerdo da página, uma manchete de jornal indicando que Hitler invadiu a Polônia. Nesta página podemos perceber uma constante ao longo das décadas: um rapazinho/jovem/senhor/velho de roupas verdes e óculos de aros redondos.
Finalmente, já na terceira página, Moore e Veitch confiam que o leitor já tenha entendido o esquema e deixam de apresentar o ano em que cada painel é narrado. Reparem bem, exatamente como na história do Super-Homem com Lex Luthor do último post, os corpos das pessoas de épocas distintas se complementam na escadaria, numa ilusão de ótica entre os quadros 2 e 3 e entre 3 e 4 (desculpem, apareceu uma escada outra vez...).
Com a palavra, Alan Moore: "Em uma das histórias de Greyshit em Tomorrow Stories, nós fizemos algo bastante peculiar com o layout dos painéis. Um apartamento, num mesmo prédio, em cada página. Para adicionar outro elemento, nós fizemos com que os painéis do topo acontecessem em 1999, o segundo painel em cada página tomasse lugar em 1979, o painel de baixo deste em 1959, e na base de cada página se visse a base do edifício como era em 1939, quando ainda era um prédio novo. Nós fomos capazes de contar, por meio de uma complicada ginástica narrativa, uma interessante historinha apresentada através de 60 anos da história do edifício, com personagens ficando mais velhos dependendo em que painel e em que período de tempo eles estavam. Isto é algo que não se pode fazer em nenhum outro meio que não nos quadrinhos (comics)."
Alguém duvida do mestre Moore? É por estas e outras que o barbudo de Northampton é tido como um dos mais criativos e inovadores autores a explorar tão bem esta mídia, não só pelo conteúdo riquíssimo, como também pela forma inusitada. Se vocês notarem bem, esta história específica pode ser lida de várias maneiras possíveis. Pode ser lida da maneira usual, uma página seguida da outra, lendo os quadros de cima para baixo a como tradicionalmente estamos acostumados. Pode ser lida, ainda, tomando-se cada época individualmente, como por exemplo os quadros passados em 1999, e lendo-os em ordem (os primeiros quadros de cada página, depois os segundos quadros de cada página, os terceiros, e por fim lendo apenas os últimos quadros de cada página até o final). Pode ser lida também por ordem cronológica, ou seja, começando com a história isolada que transcorre em 1939, depois partindo para a história de 1959, até chegar à história mais recente, de 1999. Ou pode ser lida de baixo para cima em cada página (lendo o último quadro da página 1, depois o penúltimo, depois o segundo e finalmente o primeiro quadro; após isso repetindo esta ordem na página 2 e assim por diante). Todos esses modos trazem histórias fechadas entre si, o mais impressionante de tudo, todas as histórias, não importa a ordem em que forem lidas, ainda trarão elementos coesivos entre uma e outra, com a arte se complementando em vários pontos. A última página ainda traz uma "queda" conceitual através dos quadros e através das décadas. E toda essa riqueza em apenas 8 páginas de história...
Adoro essas quebras na narrativa, com várias possibilidades de sequenciamento sem manter a linearidade cartesiana. Adoro essas inovações, quando bem executadas, e essas desconstruções de padrões, sejam nos quadrinhos ou em qualquer outra mídia ou forma de arte. Isso força nosso cérebro a trabalhar de maneiras diferentes e não usuais, e serve como um bom exercício mental. Não concordam?


(No próximo post: Mês das Mulheres!)



Videoclipe sugerido: Imitation of Life, de REM.
Filme sugerido 1: Amnésia (Memento, 2000).
Filme sugerido 2: Elefante (Elephant, 2003).
Música sugerida 1: Construção, de Chico Buarque.
Música sugerida 2: Borderline, da Madonna.
Link sugerido: arquitetura e quadrinhos.

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