Sei o quanto é difícil eleger uma história como A melhor, ainda mais quando se trata de Sandman, em que quase todas são, senão boas, muito boas ou ótimas. Mas mesmo assim vou falar de uma em particular, bem escrita e bem desenhada, que me tocou muito, e vou explicar o porquê de tê-la escolhido.
A história, narrada por alguém, começa com a frase que inicia este post, pois, como todos que já leram O Homem que Calculava (ou outra obra de Malba Tahan) sabem, todo muçulmano inicia uma narrativa com essa saudação, como as antigas exaltações às musas, ou alguma parecida, dependendo da tradução (como “Em nome de Allah, o compassivo, o todo-piedoso”).
Através de belas quadros, imagens sugestivas e hipnóticas, cores vibrantes, é mostrada a chamada joia das Arábias, a cidade de Baghdad, cheia de encantos, beleza e coisas as mais variadas e interessantes possíveis, regida por Haroun Al Raschid. Seu palácio era um lugar de Sabedoria, um lugar de Prazer, um lugar de Maravilhas... mas Haroun Al Raschid mantinha-se perturbado com algo, a despeito de tudo isso. Apenas Allah sabe o que o atormenta.
Quando percorria a cidade, à noite, Haroun Al Raschid recolhia as delícias e virtuosidades da sua joia, deparando-se com as mais variadas e fantásticas histórias. O leitor mais curioso poderá reparar que algumas das histórias citadas en passant na verdade foram inspiradas pelo clássico As Mil e Uma Noites e reconhecer algumas delas. Homenagens que o mestre Gaiman faz. Apesar de tudo isso, o rei continuava atormentado. Nem as carícias de sua esposa, nem a companhia de seu amigo vizir ou as artes do maior poeta da cidade tiravam-no de sua tristeza. Numa noite no mês de Ramadã, o rei sacou de sua chave dourada e desceu às profundezas de seu gigantesco palácio. Atravessou seu harém, as masmorras, salas onde guardava suas riquezas, labirintos e várias portas, cada uma de um material diferente, com sua chave dourada.
É de se apreciar aqui o trabalho de P. Craig Russel ao desenhar estas cenas, levando o leitor a se encantar ou se assustar juntamente com o rei na medida em que percorre o interior de seu vasto palácio. E inclusive ficar tonto ao serpentear nos labirintos subterrâneos.
Em uma sala repleta somente de ovos, ficamos sabendo da existência do ovo de Roca, uma ave tão grande que carrega elefantes até seu ninho no topo das montanhas para alimentar seus filhotes. E também da existência do Outro Ovo da Fênix, um ovo negro, do o qual, ao contrário do ovo branco do qual renasce o pássaro dourado, ninguém sabe o que surge. Atravessando finalmente uma porta feita de fogo, Haroun Al Raschid toma uma esfera de vidro, marcada por um selo, e a leva ao alto de seu palácio por passagens secretas conhecidas apenas por ele. O globo, é dito, pertenceu ao rei dos hebreus, Sulaiman Ben Daoud, que nele aprisionou nove mil e nove ifrits, djinns e demônios (alguém reconheceu o Selo de Salomão, filho de Davi?).
A imagem do tapete voador caindo no chão é, literalmente, impactante. Representa o desmoronar de toda a história até aqui. Pode-se sentir o peso do carpete quando cai, seco, desajeitadamente, levantando pó, no chão.
Quando viramos a página, vemos uma figura patética do califa caído ao chão, deitado sobre um tapete imundo e acabado, sendo acordado e levado por um de seus servos que o procurava. Sua alteza diz ter tido um sonho, ao passo que seu ajudante garante ter sido apenas pela insolação de ter dormido ao léu no mercado abandonado. Enquanto estão indo embora, o ainda desnorteado rei avista um forasteiro segurando algo em mãos, uma engenhosa e bem montada artesania. O forasteiro explica que é uma cidade, cedida a ele, e que não está mais à venda.
Reparem na sutileza do olhar do rei sobre a cidade. Reparem na singeleza de seu toque no vidro. Reparem em como seus ombros caem, resignados, hipnotizados pela visão da esplendorosa cidade que hoje só existe nos braços do Sonho. Interessante reparar como os tons da cidade, assim como o mercado, já não são mais tão vivos.
A narração termina com o velho rei sendo escoltado de volta ao seu desgastado palácio, não querendo perder de vista a cidade tão bela que deixava para trás: “e teria sido assim, dizem, que aconteceu. Mas apenas Allah pode saber.”
Na última página, o cenário já muda completamente. E o cenário aqui é importantíssimo para a história. No segundo quadro da página, ao fundo, é possível ver dois aviões, possivelmente caças, sobrevoando os céus. No quarto quadro, um edifício no horizonte, e, no quinto, linhas de transmissão de energia. Indubitavelmente, estamos no presente. E é mostrado, finalmente, o rosto do narrador da história: um velho, que a contava a um garoto em troca de moedas ou cigarro. O velho fala para o garoto ir para casa, pois estão vivenciando momentos ruins, e que, se amanhã ele estiver ali, talvez lhe conte mais. E parte, deixando o garoto, Hassan, curioso sobre o destino da cidade. A Baghdad mítica, magnânima, opulenta, das lendas, não esta em que ele hoje vive, destroçada, em ruínas, bombardeada. Seu estômago vazio e sua perna deficiente não o perturbam, pois ele está concentrado na Baghdad perene, eterna, e no Outro Ovo da Fênix...
Fenomenal o contraste de cores (belo trabalho de Digital Chameleon sobre os traços de P. Craig Russel), principalmente entre a Baghdad fantástica, multicolorida, do início da história e a Baghdad cotidiana, seca, em tons pastéis. Comparem o momento em que Sonho aparece na narrativa, com o momento em que o Haroun Al Raschid desperta e deixa para trás, na poeira, jogado ao chão, rasgado, seu tapete (esta cena, para mim, é fortíssima também):
E a história do velho, é verídica ou não? Haroun Al Raschid teve um dia a maravilhosa cidade, e deu-a aos sonhos, para que ficasse eterna na memória dos homens? Por isso o velho narrou este conto, dando continuidade à cidade na imaginação de crianças como Hassan? Ou tudo não passou de um sonho do califa causado pela insolação? Mas será que o rei daquela que um dia foi a maior cidade da Terra conseguiu o que barganhou, e hoje vive para manter sua antiga cidade viva? Seria ele o velho? Para mim, o Outro Ovo é chave da resposta.
Mas apenas Allah sabe a resposta.
-Filme sugerido: Trem da vida (Train de Vie, 1998).
Rodrigo Maia.
PS - Muito provavelmente ano que vem a Panini, que adquiriu os direitos sobre o selo Vertigo, lançará (mais uma vez no Brasil) Sandman. Aguardemos para ver o formato e, principalmente, o preço!
2 comentários:
Escolher a melhor história de Sandman é uma tarefa ingrata pois como dizes são tantas e tão boas.
Esta em particular é de facto lindíssima e tenho ideia que é das mais populares também.
O boms e Sandman é que temos uma "História" contada ao longo dos volumes, em que se caminha apra algo. E depois temos histórias soltas algumas que vão ajudar a compreende rmelhor certos aspectos da narrativa principal e outras que são apenas histórias sobre os Sonhos. E são todas muito boas.
É uma obra-prima.
Recentemente adquiri os absolute sandmans e estou curioso para ver como está esta história neles, pois foram todas recoloridas.
Abraço e obrigado pela recordação
Cada leitura de Sandman é diferente. Estou degustando as edições da Panini e sabotando até o final que nunca li.
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